Em Paris, Lula faz discurso no Instituto Sciences Po

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva realizou uma palestra, na tarde desta terça-feira (16), no Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). O evento, intitulado “Qual o lugar do Brasil no mundo de amanhã?, celebra os dez anos do título Doutor Honoris Causa concedido pela instituição a Lula.

O ex-presidente foi o primeiro latino-americano a receber o título desta que é uma das instituições mais respeitadas do mundo na área de ciência política e social.

Confirma os principais trechos da palestra: 

“Disse em 2011 e reafirmo que estas homenagens não pertencem a mim pessoalmente, mas ao sofrido e corajoso povo brasileiro, em sua luta permanente por um país e um mundo mais justo, menos desiguais e mais democráticos.

Pessoalmente, tenho muito a agradecer pelo apoio e solidariedade que recebi de tantos amigos e companheiros de Paris e todas França, ao longo do período em que fui alvo de uma implacável perseguição judicial, política e midiática em meu país.

Foram cinco anos de luta pela verdade e pela justiça até que o Supremo Tribunal Federal do Brasil viesse a estabelecer, afinal, a suspeição e a parcialidade do juiz que me condenou sem provas e sem causa, como vinham denunciando desde o início meus incansáveis advogados, Cristiano Zanin e Valeska Teixeira Martins.

Sempre compreendi que ao condenar, prender ilegalmente e tentar proscrever minha pessoa, o que se pretendia era aniquilar o projeto de um país mais justo, soberano, comprometido com a sustentabilidade ambiental e democraticamente integrado ao mundo, que os governos do Partido dos Trabalhadores representaram e continuam representando no Brasil.

Nossa vitória na dura batalha para restabelecer minha inocência e meus direitos políticos insere-se na luta mais ampla do povo brasileiro e dos que defendem a liberdade e a democracia em todo o mundo. Se vencemos, foi porque nunca estive só. Os 580 dias e noites em que estive preso foram também 580 dias e noites em que, do lado de fora, sob sol ou sob chuva, companheiros e companheiras que eu nem conhecia pessoalmente estavam em permanente e solidária vigília.

Quando estive aqui, em setembro de 2011, o mundo ainda sofria os impactos da grande crise do capitalismo de 2008, decorrente da especulação financeira desenfreada e sem controles.

O alerta para os efeitos nefastos do aquecimento global já estava na ordem do dia. Debatíamos a necessidade de fortalecer os organismos multilaterais e de atuarmos coordenadamente pela paz, contra a desigualdade, a miséria e a fome no mundo.

Dez anos depois, os desafios fundamentais da humanidade continuam os mesmos. A urgência de enfrentá-los é que vai se tornando maior. Uma urgência agravada pela pandemia que segue devastando especialmente as populações dos países mais pobres, além daqueles cujos governos negaram a Ciência ou, pior ainda, investiram na morte, como ocorreu no Brasil.

É duro, mas é necessário, admitir que na última década o mundo regrediu.

Não há como explicar às gerações futuras que em nosso tempo 1% da humanidade detém quase a metade da riqueza do planeta, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome. Que uns poucos privilegiados viajam ao espaço por um capricho bilionário, enquanto milhões de famílias não têm sequer onde morar.

Não há justificativa para não termos taxado as transações financeiras globais, e criado fundos de desenvolvimento e combate à pobreza.

É diante desses desafios que me convidam a falar sobre o papel do Brasil no futuro próximo. Apesar da gravíssima situação e de todos os retrocessos que foram impostos ao país e ao povo brasileiro nos anos recentes, quero trazer uma palavra de esperança.

É inevitável comparar a posição que o Brasil havia alcançado nas relações internacionais com o isolamento entre as nações em que o país se encontra hoje. Isso não é fruto do acaso. É o resultado de uma disputa pelo poder que extrapolou os limites da Constituição e do respeito à democracia, até culminar no golpe do impeachment sem crime da presidenta Dilma Rousseff, em 2016, e tudo o que veio depois.

O objetivo indisfarçável do golpe era reverter o projeto de país soberano, voltado para o desenvolvimento econômico, social e ambientalmente sustentável, com geração de emprego e distribuição de renda para a imensa maioria historicamente excluída.

Ampliamos significativamente o investimento público em políticas sociais e de infraestrutura para o crescimento, reduzindo e controlando a inflação e a dívida pública. O Brasil chegou a ser a sexta maior economia do mundo. Em 12 anos, criamos 20 milhões de empregos formais, elevamos em 74% o salário-mínimo e, graças a um conjunto de programas, dos quais o mais conhecido é o Bolsa Família, tiramos da miséria 36 milhões de pessoas. Em 2012, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU.

Criamos 18 universidades, com 178 novos campi e 422 escolas técnicas por todo o país. O Estado criou o passou a garantir o crédito educativo, ampliou a oferta de vagas e reservamos cotas para negros, indígenas e alunos de escolas públicas nas universidades. As matrículas no ensino superior saltaram de 3,5 milhões para 8 milhões e, pela primeira vez, negros, pardos e filhos de trabalhadores chegaram a ser maioria nas universidades públicas do Brasil.

Dessa forma reduzimos a desigualdade e ao mesmo tempo aprofundamos a democracia.

Costumo dizer que tudo isso aconteceu porque, também pela primeira vez, colocamos os pobres e os trabalhadores no Orçamento da União, provando com isso que os pobres não são problema, mas sim a solução do país.

Transformações dessa magnitude parecem intoleráveis para elites forjadas num processo histórico marcado pela violenta apropriação das terras e das riquezas naturais, pelo genocídio dos indígenas e por mais de três séculos de escravização de povos africanos.

Havíamos interrompido um ciclo de políticas econômicas neoliberais, de encolhimento do estado e privatização sem critério. Contrariamos poderosos interesses econômicos, financeiros e geopolíticos dentro e fora do Brasil. Foi para interromper aquele projeto de país soberano e retomar o ciclo neoliberal que mentiram ao país até levar um governo autoritário e obscurantista à presidência da República.

Na realidade, o processo de destruição nacional em curso no Brasil só poderia ser conduzido por um governo antidemocrático, num país envenenado pela indústria das fake news e em que a oposição é excluída dos debates nos grandes meios de comunicação.

Destruíram cadeias econômicas essenciais, os setores de engenharia, óleo e gás, e estão destruindo a maior empresa do povo brasileiro, a Petrobrás. Corroeram as finanças públicas e contrariamente ao que prometiam, minaram a confiança dos investidores. Transformaram o Brasil numa economia onde apenas especuladores e oportunistas obtém benefícios.

O resultado é que em apenas cinco anos os trabalhadores perderam direitos fundamentais, o desemprego e o custo de vida explodiram, programas sociais foram abandonados ou descontinuados, incluindo o Bolsa Família. A fome voltou ao cotidiano das famílias.

O governo desmonta políticas públicas bem sucedidas e persegue os cientistas, artistas, professores e lideranças sociais; incentiva a destruição das florestas e a mineração ilegal.

Este governo colocou o Brasil de costas para o mundo e quem mais sofre com isso é o povo.

Por todos estes motivos, uma nova inserção do Brasil no cenário mundial passa, necessariamente, pela reconstrução do país, num processo de eleições democráticas e verdadeiramente livres, sem fake news diferentemente do que ocorreu em 2018.

Temos de buscar estes caminhos no diálogo democrático, sincero e com sentido de justiça, para o qual o Brasil terá muito a contribuir, tão logo volte a ser a um país soberano.

O mundo ainda vive a grande crise causada pela pandemia. Como ocorreu depois de outras grandes crises, é necessário reconstruir as instituições internacionais sobre novas bases. Não podemos continuar governados pelo sistema criado após a Segunda Guerra Mundial. É urgente convocar uma conferência mundial, com representação de todos os Estado, e participação da sociedade civil, para definir uma nova governança global, justa e representativa.

Neste planeta que compartilhamos, o futuro da humanidade precisa ser construído com diálogo e não autoritarismo, com paz e não com violência; com mais livros e não mais armas; com mais escolas para termos menos presídios. Com mais verdade, e menos mentiras. Com mais respeito a natureza, para assegurarmos a água, o ar e a vida para nossos filhos e netos. Com mais acolhimento e solidariedade, e menos exclusão.

Com mais amor e menos ódio.

Muito obrigado, do fundo do meu coração, por esse reencontro.

MUITO OBRIGADO!”

Luiz Inácio Lula da Silva

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